quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Nossos cardápios estão recheados de produtos alterados



Por IHU OnLine
A fome no Brasil é um “fenômeno socialmente produzido e reproduzido pela mão do homem, que iniciou com a usurpação de terras indígenas pelos colonizadores, que deram origem a nossa aristocracia rural”, alerta a economista Brizabel da Rocha (*), autora de ‘Política de segurança alimentar nutricional’.
Ao avaliar as políticas públicas brasileiras de combate à fome, ela enfatiza que “desde a República até o nosso século encontramos políticas públicas reprodutoras da pobreza, na tentativa de sua superação, com supremacia dos interesses econômicos sobre os direitos sociais”.

Leia a entrevista:

Historicamente, como os programas de combate à fome foram construídos no país? Que aspectos caracterizaram tais programas ao longo dos últimos 70 anos?

Na história recente de nosso país encontramos a origem da fome como um fenômeno socialmente produzido e reproduzido pela mão do homem, iniciado com a usurpação de terras indígenas pelos colonizadores, os quais deram origem a nossa aristocracia rural. Da República até o nosso século, encontramos políticas públicas reprodutoras da pobreza, na tentativa de sua superação, com supremacia dos interesses econômicos sobre os direitos sociais.
Ao abordarmos a questão da fome, num país como o Brasil, de dimensões continentais, rico em suas fontes naturais (minerais, hídricas, ecossistêmicas), sua biodiversidade, seu clima tropical, e também em suas fronteiras agrícolas, temos de abordar a questão da terra, da agricultura, das opções de desenvolvimento, e reconhecer que a fome (em suas diversas expressões), mesmo em diferentes períodos históricos e de desenvolvimento do país, é o resultado de um contexto político, econômico e social.

Dessa forma, os aspectos que caracterizaram os programas públicos de combate à fome sempre estiveram diretamente ligados à alternância dos ciclos administrativos, governamentais, ao longo dos anos. Foram avanços trazidos pelo médico, escritor e político pernambucano Josué de Castro, já em 1940, a partir de estudos científicos de e inquéritos alimentares, que caracterizaram cinco "áreas alimentares" no país, instituindo na época uma nova visão sobre os programas públicos.
Houve retrocessos e negação do fenômeno da fome e da pobreza, no período ditatorial (1964 a 1986). Também houve certa estagnação na década de 1990. Porém, os movimentos sociais e populares, em 1993, recolocaram o tema na agenda. Houve nova retomada somente a partir do ano de 2003, no primeiro mandato do presidente Lula.

Desde a criação do Serviço de Alimentação e Previdência Social – SAPS, em 1940, que buscava baratear o valor da alimentação para o trabalhador, até a instituição do programa governamental Fome Zero, que avaliação é possível fazer sobre as políticas públicas brasileiras nessa área?

Os programas desse período a partir do SAPS, embora morosos na sua implantação e implementação, procuraram abordar questões estruturais e imediatas que estavam presentes naquela década. Houve a criação do Serviço Técnico de Alimentação Nacional – STAN, ligado diretamente ao poder Executivo. Tinha por função estimular pesquisa de nutrição e aperfeiçoar os processos industriais de produção de alimentos bem como instalar a Comissão Nacional de Alimentação – CNA, que estabeleceu o Plano Nacional de Alimentação, o qual reconheceu, pela primeira vez, as questões estruturais, econômicas e políticas geradoras da fome.
Foi o último programa, quando então vivemos o período do governo militar, quando todos os programas foram fragmentados, com multiplicidade de ações, sem a visão de direitos vinculados a um forte cunho clientelista e paternalista (que de alguma forma ainda hoje se vê). Isso proporcionava a dependência da população pobre às benesses do governo. No final da década de 1990, as medidas foram de caráter administrativo, privatizações, reforma do estado, sem incidir nas questões sociais marcadas por profundas desigualdades.

A partir de que momento a fome passou a ser compreendida numa perspectiva de Segurança Alimentar Nutricional? Que mudanças ocorreram nos programas sociais a partir dessa interpretação?

No Brasil, as primeiras referências documentais de governo datam do final do ano de 1985, através do Ministério da Agricultura, quando foi elaborada a proposta de Política Nacional de Segurança Alimentar com objetivos centrais de atender às necessidades alimentares da população e atingir a autossuficiência nacional de produção de alimentos, com o que se critou o Conselho Nacional de Segurança Alimentar. A proposta, à época, teve pouca repercussão, mas sementes foram lançadas.
Passou-se a incorporar, no conceito de segurança alimentar, temas relevantes como a qualidade sanitária, biológica, nutricional e cultural dos alimentos, assim como a segurança alimentar domiciliar, agregando-se aí noções correlacionadas como a de assistência básica à saúde, o cuidado promovido no lar, o cuidado do preparo dos alimentos, a necessidade do aleitamento materno. Dessa forma foi dado ao conceito – para além do acesso aos alimentos – uma face mais humana.

Como equacionar problemas estruturais no que se refere à questão da fome e da segurança alimentar, superando o assistencialismo que domina as políticas públicas na área? Por que é tão difícil ultrapassar essa barreira do assistencialismo?

Passa pelo processo de educação de um povo. É interessante que na minha pesquisa de mestrado, onde tento verificar como esse direito humano é garantido à população de três regiões distintas de Porto Alegre, a categoria “educação” foi a primeira evidenciada pelos sujeitos pesquisados. Ela surge como fio condutor para garantia de condições de qualidade de vida, saúde, possibilidade de participação efetiva do ser humano em seu núcleo familiar, em sua comunidade, permeando todo o processo de vida das pessoas para que a cidadania seja exercida. Essa cidadania só será exercida plenamente pela dignidade do trabalho, constitutivo da identidade humana. Faz-se necessário o acesso ao trabalho e aos meios de produção.

Diante dos programas sociais e das políticas públicas direcionadas à alimentação, é possível falar em insegurança alimentar no Brasil?
Costumo dizer que a população mandatária da política de assistência social é uma população em insegurança alimentar. A insegurança alimentar, em qualquer dos seus graus de gravidade, é mais frequente nos domicílios dos estratos sociais mais baixos. Via de regra, a população em insegurança alimentar associa uma combinação de fatores tais como baixa escolaridade, trabalho informal, precarização das condições de trabalho, ausência de renda, ou renda muito baixa, incidência da questão de gênero, mulheres chefes de família, e crianças.

Porém, todos nós nos encontramos, de uma forma ou de outra, em insegurança alimentar. Isso porque todos estamos rodeados de alimentos com agrotóxicos, alimentos com alto processo de industrialização que deixam de ser alimentos. Lembro o recente caso da alteração criminosa do leite no Rio Grande do Sul. Há também os alimentos geneticamente modificados, dos quais não sabemos os efeitos colaterais em nosso organismo, sem contar os efeitos com relação ao meio ambiente. As águas contaminadas. Enfim, todos nós estamos afetos. 
* Brizabel da Rocha é graduada em Economia Doméstica pela Universidade de Passo Fundo – UPF, especialista em Cooperativismo e Associativismo pela Universidade do Vale dos Sinos – Unisinos, e em Gestão da Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS (2007). Também é mestre em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS (2011). Atualmente é colaboradora técnica do Instituto Harpya Harpia/SP, uma OSCIP que atua na defesa e promoção do direito humano ao alimento e à nutrição.

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